Na primeira parte desta grande reportagem, explicamos os conceitos de interseccionalidade, grupos sócio-acêntricos e também falamos sobre a relação interseccional entre o movimento negro e as pessoas com deficiência. Agora, daremos continuidade à temática abordando a categoria das mulheres com deficiência.
Mulheres com deficiência: lutando contra o machismo e o capacitismo
A categoria mulheres, assim como a dos negros e pardos, não se enquadraria no antigo conceito numérico de “minoria social”, visto que ambas representam um pouco mais da metade da população brasileira.
Mas se encaixa como grupo sócio-acêntrico, pois sua visibilidade e representação na mídia tradicional são cercadas de estereótipos e ainda recebem influências do machismo, por mais que haja muitas mudanças positivas atualmente, incentivadas pela popularização do movimento pela igualdade de gêneros, o feminismo.
E, quando a categoria mulheres se intersecciona com a das pessoas com deficiência, uma nova dinâmica discriminatória surge, recebendo influências do machismo e do capacitismo (o preconceito contra indivíduos com deficiência) simultaneamente, como explica Raquel Cassoli, psicóloga e doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP.
Normalmente, a mulher com deficiência, por causa do machismo, é vista como assexuada, pois em nossa sociedade a sexualidade é associada à beleza e à perfeição. Existe certo mito em relação a vida amorosa das pessoas deficientes, como se uma deficiência incapacitasse o desenvolvimento humano como um todo, criando o estereótipo de que os deficientes são sempre imaturos, infantilizados, com capacidade intelectual e cognitiva reduzida, e, desta maneira, incapazes de se envolverem em relacionamentos amorosos e sexuais.

Diéfani Piovezan. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
Diéfani Favareto Piovezan, 28 anos, analista júnior em Business Solution Automation, moradora de Ribeirão Preto/SP e pessoa com deficiência física (dificuldades de locomoção) e auditiva (surdez profunda, usuária de Implante Coclear) causadas por uma síndrome rara, confirma o depoimento da psicóloga Raquel com as suas próprias experiências de vida.
Em algumas ficadas prolongadas que vivenciei, descobri que as pessoas achavam que ‘surdo era mudo e vendia adesivo’ ou que ‘o sexo seria ruim ou estranho pelos problemas motores’. Teve gente que se sentiu desconfortável porque eu não me encaixava nos padrões da sociedade e, mesmo gostando de estar comigo, pularam fora. Sinceramente? Melhor assim, prefiro gente que me acrescenta algo.
Diéfani já chegou a vivenciar o machismo e a superproteção até mesmo dentro da própria família. “Um dos principais problemas que tenho é com o meu pai. Ele acha que, por eu ser mulher, não posso fazer diversas coisas e, sendo mulher com deficiência, ele fica ainda mais nervoso. Em 2016, perdi meu avô materno, e meu pai simplesmente me proibiu de ir até o velório dele em Diadema. Disse que mulher dirigir sozinha era perigoso. Eu disse que uma amiga iria comigo, e ele falou que, se estourasse o pneu, nenhuma das duas ia saber trocar. Como na época eu estava desempregada e ele pagava meu plano de saúde, ele ameaçou cortar se eu fosse (e ele não é do tipo que só ameaça), então eu acabei não indo. Hoje, não dependo dele para mais nada e dou poucos detalhes da minha vida a ele para evitar fadiga”.

Bárbara Garcia. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
Bárbara Garcia, 24 anos, jornalista, moradora de Campinas/SP e pessoa com deficiência física (um distúrbio de movimento chamado de diplegia espástica), também comenta sobre o quanto é difícil para as mulheres com deficiência se sentirem representadas na mídia tradicional.
O machismo em relação às mulheres com deficiência se mostra bastante nos padrões de beleza, que são muito cruéis. As mulheres mostradas pela mídia como símbolo de sensualidade e beleza não tem a deficiência como característica. Isso faz com que esses preconceitos sejam reproduzidos também em nossas relações afetivas. Já passei por um relacionamento abusivo, com uma pessoa que eu amava muito e me manipulava. Em alguns momentos, ele utilizou a minha deficiência para me inferiorizar, para criar a imagem de que eu era frágil, imatura e dependente perante os amigos dele.
Priscila Medeiros, que participou da primeira parte desta reportagem, também teve uma experiência parecida com a de Bárbara. “Já namorei uma pessoa que não me apresentou para a família dele e, certa vez, quando encontrou um amigo, me apresentou como amiga ao invés de namorada. Infelizmente, ainda existem pessoas que estão contaminadas com os preconceitos que a sociedade tem perante a pessoa com deficiência, e sentem medo, receio ou vergonha por estarem se relacionando com alguém com deficiência, como se estivessem fazendo algo de errado”.
Priscila também relembra de situações de estranhamento alheio quando ela busca participar de discussões ou simplesmente dar a sua opinião sobre um assunto. “Já passei por momentos em que me expressei e ficaram surpresos ou atentos demais, como se fosse uma coisa impressionante eu dar uma opinião. Ocorreu algumas vezes de falarem baixo, ou pedirem para eu tampar os ouvidos para falarem algo considerado malicioso, como se eu fosse um ser purificado por ser mulher e ter um distúrbio de movimento. Acredito que essa reação é porque o deficiente, na cabeça das pessoas, ou ele é mais ou ele é menos do que apenas aquela deficiência, ele nunca pode ser simplesmente normal além daquilo”, pondera.
A constante dúvida sobre as capacidades das mulheres com deficiência é algo ainda muito comum no meio social. Diéfani também tem relatos neste sentido. “Em alguns empregos anteriores e no ambiente acadêmico, já houve situações em que, por eu, além de ser mulher na área de computação, ainda tinha deficiência, me viam como menos capaz ou mais vulnerável, o que nunca foi o caso. Neste ponto, acabei surpreendendo muita gente e excedendo expectativas. As pessoas tendem a me ver como coitadinha, e preciso todos os dias provar o contrário. Aí dizem que me admiram por tudo, mas eu acho que o fato de eu viver e não me fazer de vitima do mundo deveria ser algo normal, porém, as pessoas não pensam assim. Ah, e tem a clássica pergunta: ‘mas você dirige?’ E quando pegam carona comigo, soltam: ‘nossa, você dirige muito bem, nem imaginava!’”.
Já Bárbara explica que esta constante necessidade de provação social pela qual muitas mulheres com deficiência passam é cansativa e esgotante. “Já senti que algumas pessoas talvez duvidassem muito da minha capacidade porque a deficiência, às vezes, é vista como sinônimo de fragilidade. Por isso, tive que enfrentar barreiras não só de acesso, mas também de comportamento. Tive que vestir aquela fantasia de ‘mulher corajosa que enfrenta tudo’, que muitas pessoas com deficiência são obrigadas a vestir. Acho muito cansativo ter que provar 24 horas por dia que sou capaz de fazer atividades cotidianas simples. É importante tentar enfrentar as limitações sim, mas sem tantas cobranças alheias”, acredita a jornalista.

Psicóloga Michele Menegon. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
Michele Menegon, psicóloga e pós-graduanda em neuropsicopedagogia, aproveita para fazer uma observação a respeito de casos de deficiências adquiridas na idade adulta, onde é indicado que o indivíduo tenha acompanhamento psicológico e de reabilitação para se acostumar com a sua nova realidade.
Quando falamos em deficiência, é importante saber se esta é adquirida ou se sempre esteve com o indivíduo. Se pensarmos em uma pessoa que era considerada ‘normal’, mas sofreu um acidente automobilístico que lhe deixou sequelas, digamos que se trata de uma deficiência adquirida. Quando é assim, a pessoa precisa se readaptar a uma nova vida. Muitas vezes, deixa de trabalhar, de realizar atividades que fazia antes. É importante então que esta pessoa tenha um acompanhamento para se reabilitar.
A questão da violência contra as mulheres com deficiência
Em se falando de preconceitos, também não podemos deixar de mencionar o tipo extremo desta conduta: a violência. Alguns graus de deficiência física, sensorial e intelectual fazem o indivíduo requerer suporte de outras pessoas, sejam elas da família, amigos ou profissionais cuidadores. Tal panorama algumas vezes acaba sendo favorável ao desenvolvimento de relações abusivas psicologicamente ou até mesmo no nível físico/sexual, principalmente para as mulheres.
Bárbara, além de ter passado por um relacionamento afetivo abusivo, também relata que já vivenciou outros tipos de violência. “Já sofri violência física e doméstica. E violência psicológica por parte de profissionais de uma clínica de reabilitação (que não conheciam o quadro da minha deficiência e diziam que eu não andava como as outras pessoas simplesmente porque não queria ou não treinava direito, ou porque tinha algum problema psicológico). Violência sexual nunca sofri, mas tenho medo, porque caso aconteça, não poderei sair correndo… Minhas chances de me defender fisicamente são menores”.
Devido a estas especificidades das pessoas com deficiência, o sistema penal brasileiro determina punição um terço maior para quem agride indivíduos nestas condições. E a psicóloga Raquel Cassoli reflete sobre algumas outras medidas que poderiam ser tomadas para ajudar a diminuir a vulnerabilidade das mulheres com deficiência ao abuso físico ou sexual.
“Com as mulheres deficientes seria necessário desenvolver alguma forma de comunicação, ou um código, que elas possam usar com outra pessoa de confiança quando estiverem desconfortáveis ou se sentindo ameaçadas. Dar preferência também por cuidadoras mulheres para as mulheres, mas ainda assim, dependendo dos tipos de cuidados que a pessoa precisa, isso não as livraria de um ato violento”. Ou seja, a ocorrência da violência é algo que diz respeito a toda a sociedade, portanto, a mobilização para a sua prevenção deveria envolver a todos, independentemente de gêneros ou classes sociais.
Os estereótipos da maternidade para a mulher com deficiência

Psicóloga Raquel Cassoli. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
A questão da maternidade para as mulheres com deficiência também é outro fator afetado diretamente pelos preconceitos vivenciados por esta categoria interseccional. “A sociedade quase não distingue a pessoa da deficiência que ela tem, a vê como toda incapaz ou como alguém que gerará filhos deficientes e isso, muitas vezes, inviabiliza o relacionamento amoroso. Ao se pensar numa mulher com deficiência e mãe, as pessoas pensam que ela precisará de alguém extra para cuidar da criança, se é que ela gerará uma criança. Esta desconfiança sobre a capacidade reprodutiva está relacionada ao estigma da deficiência como algo que incapacita todo o indivíduo”, explica a psicóloga Raquel.
Priscila não tem filhos ainda, e considera esta possibilidade em sua vida. Mas já se deparou com pessoas dizendo “Claro que você não tem filhos, né?”, como se algo a impedisse de gerar uma criança. Já para Bárbara, a situação é o oposto, o que mostra que pode haver cobranças comuns a qualquer mulher em relação à maternidade.
Minha mãe foi criada de um jeito bastante tradicional. Por isso, às vezes usava frases como ‘Quando você for mãe, vai entender’, como se fosse certeza absoluta de que eu um dia serei mãe. Expliquei para ela que essa não é uma certeza, que eu não tenho decidido nada a respeito. Eu não tenho uma visão tão bonita da maternidade. Procuro sempre desromantizar a questão. Vejo muita gente querendo ter filhos por autoafirmação, vaidade ou então por ‘acidente’. Adoro crianças, mas acho que ser mãe é uma grande responsabilidade para a vida toda.
Acompanhe a seguir a continuidade desta grande reportagem, com o artigo sobre a interseccionalidade na vida das pessoas com deficiência e sobrepeso/obesidade.
Por Ana Raquel Périco Mangili.
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