Interseccionalidade. Você já ouviu falar sobre este conceito? Ele é relativamente recente e costuma estar em pauta em ambientes como universidades e no ativismo de movimentos sociais, pois é uma abordagem que estuda a dinâmica da violência e da opressão provocadas por mais de uma estrutura de poder e dirigidas a grupos sociais em condições vulneráveis.
Para uma melhor compreensão da interseccionalidade, é fundamental explicar o que são os grupos sócio-acêntricos, termo defendido pelo pesquisador brasileiro Ricardo Alexino Ferreira e que busca substituir a antiga expressão “minorias sociais”.
Quando o termo “minorias” era utilizado, o enfoque se dava à questão numérica: entendia-se então que tais grupos sociais representavam apenas uma pequena parcela da população, que dificilmente encontrava visibilidade e representação de suas vivências na política e na mídia tradicional.
A expressão abarcava as pessoas com deficiência, os negros e pardos, os homossexuais, os ateus e muitos outros segmentos da população. Mas, por que chamar de minorias sociais grupos que, na realidade, não são numericamente pequenos?
As pessoas negras e pardas, por exemplo, são 52,7% dos brasileiros, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017. E as pessoas com deficiência representam 23,9% da população do país, segundo o Censo Demográfico 2010 do IBGE.
Por isto, a nova nomenclatura procura enfatizar que tais grupos sociais, apesar de serem numerosos, estão longe da política e da cobertura midiática centrais do Brasil.
As desigualdades e a violência provocadas pela invisibilidade social possuem raízes históricas, como afirma o Prof. Dr. Juarez Xavier, assessor da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual Paulista (UNESP) e coordenador do programa institucional “Educando para a Diversidade”, ao comentar sobre a situação de grupos sócio-acêntricos como os negros, as mulheres, as pessoas com deficiência e os indivíduos de baixa renda.
É importante salientar que, na passagem do século 19 para o século 20, no Brasil em especial, essas quatro categorias eram consideradas inferiores pelos operadores políticos do país (os arquitetos dos aparelhos repressivos e ideológicos), adeptos da teoria do racismo científico, em voga na Europa, que classificava o homem branco, heterossexual, rico e são como o modelo ideal para a sociedade do futuro.
Observa-se, então, que a realidade da discriminação histórica não abrange apenas um marcador social, e sim se baseia principalmente em três deles: gênero, classe e raça (além de outros, como a orientação sexual, a identidade de gênero, a deficiência…). E o objetivo da interseccionalidade é compreender a interação entre tais marcadores para combater a desigualdade e a violência existentes na sociedade.
Esta grande reportagem tem o intuito de retratar as diversas interseccionalidades que podem estar presentes na vida do indivíduo com deficiência, e será dividida em artigos sobre as categorias sociais mais conhecidas atualmente. A começar logo abaixo pelo retrato da interseccionalidade na vida das pessoas negras e com deficiência.
A interseccionalidade e o movimento negro
A popularização dos estudos sobre interseccionalidade no Brasil está diretamente relacionada com a luta contra o racismo e o surgimento do movimento negro moderno, em 1978, com a fundação do Movimento Negro Unificado Contra o Racismo.

Prof. Dr. Juarez Xavier. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
“No final da década de 1970, como parte das ações de 1968, ‘o ano que não terminou’, o mundo estava em brasa: ações políticas da juventude na Europa, tendo Paris como epicentro, e em toda a América Latina, contra as ditaduras civis-militares instaladas, lutas pelos direitos civis no Estado Unidos, e fim das lutas pela libertação na África. Nesse contexto emerge o novo movimento negro no Brasil, que passa a observar o problema do racismo como uma ação articulada do estado contra a população negra. No seu lançamento, feito em frente ao Teatro Municipal de São Paulo, a exemplo da Semana de Arte Moderna em 1922, estavam contempladas as reivindicações de negros, mulheres, pobres, gays, lésbicas, prostitutas e demais grupos em condições de vulnerabilidade sociais. O movimento então nasce interseccional, inclusive por conta da influência do movimento negro norte-americano”, afirma o Prof. Dr. Juarez Xavier.
Por mais que a luta contra o racismo tenha surtido resultados e melhorias no panorama social até os dias atuais, ainda há muitas desigualdades e injustiças a se combater. Esta posição é defendida por Juarez Xavier e também embasada em dados de estudos brasileiros.
“O extermínio da juventude negra atingiu a cifra de cerca de 50 mil homicídios em 2015, segundo o Mapa da Violência. Nessa luta, o movimento negro denuncia a violência contra o jovem negro, a mulher e o pobre, que formam cerca de 95% das vítimas de homicídios violentos no país”, exemplifica o professor.
Então, sim, o racismo ainda encontra expressão nos dias atuais, infelizmente. Priscila Medeiros, 31 anos, formada em Pedagogia, moradora de São Paulo e que se identifica como mulher negra e com deficiência física (um distúrbio de movimento chamado Distonia), conta que, quando era criança, passou por várias situações de discriminação. “Na infância, recebi comentários negativos em relação ao meu cabelo, coisas do tipo ‘ele é ruim’, ‘prende, senão parece uma vassoura’, ‘ele é muito embaraçado’”.
No caso das mulheres negras, mais um marcador social se encontra nesta interseccionalidade, como explica Ana Carolina Moraes, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Observações em Economia Criativa (NeoCriativa) da UNESP.
Tudo isso fica ainda pior se você for mulher neste contexto. Vivemos em uma sociedade patriarcal e machista, na qual a mulher ainda é vista como um ser submisso ao homem. O que eu observo é que, quanto maior o cenário de vulnerabilidade social (moradias precárias, bairros sem infraestrutura, educação limitada e de má qualidade, serviços de saúde quase inexistentes, péssimas condições de trabalho), maior é a violência contra a mulher negra”.

Priscila Medeiros. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
Hoje, Priscila trabalha, mas quando ela estava em busca de emprego, também enfrentou discriminações. “Já passei por preconceitos, principalmente numa época em que participava de muitas entrevistas em escolas de educação infantil. Ouvi coisas do tipo ‘você não tem perfil para a vaga’. Mas, se possuo a formação exigida, por qual motivo eu não teria o perfil? Uma vez, até questionei: ‘mas eu estudei para isso’. E aí disseram ‘mas é melhor também quando a pessoa já é mãe’. Teve um caso em que a entrevistadora, diretora da escola, não me deu a oportunidade de me apresentar, me fez sair da sala com a desculpa de entregar um papel na recepção e, quando voltei, encerrou o processo seletivo”, relembra.
Priscila também sente muita falta da representatividade na mídia tradicional. “A mulher negra é minoria na mídia. Atualmente, com o ativismo de mulheres negras em evidência, vem crescendo uma representatividade, mesmo que de forma sutil e, aos poucos, vamos conquistando nossos espaços sem os típicos estereótipos, que são um grande problema, pois a mulher negra acaba sendo vista na sociedade daquela forma que a mídia tradicional apresenta: durona, barraqueira e até hipersensualizada, e muitas de nós sofremos a consequência disso no dia a dia. Já em relação à mulher com deficiência, esta representatividade praticamente não existe na mídia tradicional. Se existisse, seria ótimo e, com certeza, o preconceito perante a pessoa com deficiência diminuiria de forma considerável”.
Acompanhe a seguir a continuidade desta grande reportagem, com o artigo sobre a interseccionalidade na vida das mulheres com deficiência.
Por Ana Raquel Périco Mangili.
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