Aproveitando que recentemente debatemos aqui no blog a respeito do próprio conceito de discinesia, hoje resolvi trazer outra questão de terminologias que observo muito no contexto dos distúrbios de movimento: o uso das palavras doença e deficiência.
Vamos começar observando a definição básica de cada uma delas. Doença é um conceito muito utilizado em Medicina e nas demais ciências biológicas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), doença é tudo aquilo que causa alterações no estado de saúde de um indivíduo. As causas e os tipos de doenças são as mais variadas possíveis, e por isso a OMS criou a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (chamada também de CID). Nela, estão listadas todas as condições conhecidas que são classificadas como doenças, ou seja, como alterações no estado padrão de saúde humana (devido a esta definição, até gravidez entra na lista, como pode ser conferido aqui).
Já a palavra deficiência, segundo a Lei Brasileira de Inclusão (que foi baseada na Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência), é definida em conjunto com o termo pessoa, sendo “pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (artigo 2º da LBI).
Vale lembrar também que o conceito de deficiência é diferente daquele de impedimento/diversidade funcional. O primeiro (deficiência) está relacionado às interações entre a pessoa com um impedimento e as barreiras presentes na sociedade. Ou seja, a deficiência não está no indivíduo unicamente, mas sim no meio social, na dificuldade da sociedade em suprir as necessidades de todos os seus cidadãos, de permitir a eles uma igualdade de condições de vida. E o impedimento/diversidade funcional deve ser considerado como um tipo de característica da pessoa, assim como a cor da pele, do cabelo, entre tantas outras que compõem a diversidade humana.
Então, penso eu, autora do Blog Dyskinesis, que raciocínio parecido se aplica quando comparamos as palavras doença e deficiência. Doença é um termo que se foca na característica da pessoa que a torna desviante do padrão (no caso, de corpo humano considerado saudável).
Acredito que, por isso e também pela cultura do capacitismo, a palavra doença ainda carrega um certo estigma social. Ao mesmo tempo, também é utilizada para diversas condições humanas que não denotam um sentido particularmente negativo, como no caso da gravidez, visto acima no link do CID. Associamos tanto a palavra doença com algo pejorativo que acabamos perdendo o real significado do termo.
Mas o fato é que esta palavra é mesmo mais restrita à área médica e, como meu próprio neurologista disse-me uma vez, até na Medicina o termo vem sendo gradualmente substituído por outro: afecção. Fora dos consultórios, a tendência também é de se utilizar cada vez mais outras palavras ou expressões que tenham sentido parecido, mas com um tom menos negativo: problema de saúde, condição física/sensorial/intelectual ou até mesmo deficiência.
Porém, atenção! Não dá para falar que os termos doença e deficiência sejam sinônimos, de forma alguma. Variadas patologias não causam deficiências e, além disso, o próprio conceito de deficiência é mais abrangente, envolvendo as barreiras sociais e não se focando nas características individuais de cada um como fator de diferenciação.
Obs.: em relação aos distúrbios de movimento, a nomenclatura desta categoria só recentemente está sendo divulgada e ainda é muito ligada à área médica, por isso a palavra doença se encontra, até então, relacionada com frequência às discinesias, seja no CID (enquadradas como “G20-G26 – Doenças extrapiramidais e transtornos dos movimentos”) ou nos próprios nomes de algumas síndromes (como a Doença de Parkinson e a Doença de Wilson). Mas a maioria delas também se enquadra como deficiência, pois traz impedimentos físicos/diversidades funcionais que requerem o apoio de recursos de acessibilidade para a promoção de uma experiência de vida com igualdade de oportunidades.
* Créditos das imagens: domínio público (primeira ilustração) e Pixabay (segunda ilustração).
Por Ana Raquel Périco Mangili.
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