Uma das prováveis características de uma discinesia é a perda do controle, em graus variáveis, dos nossos movimentos corporais. E com ela pode vir também a alteração na funcionalidade dos membros (braços, pernas e pescoço), seja em apenas um deles ou em todos, nos casos generalizados. Mas as consequências sociais de se conviver com um distúrbio de movimento é um assunto pouco debatido de modo geral.
A origem de tudo isso está, sem dúvida, em nossa cultura capacitista. Como já falei em outro post recente, o capacitismo é a crença social de que o indivíduo com deficiência é incompleto, diferente e menos apto para executar qualquer função ou gerir a própria vida.
Assim, somos ensinados desde pequenos a acreditar que, quanto mais dentro do padrão estivermos, ou seja, quanto mais habilidades físicas, intelectuais, sociais, entre outras, tivermos, mais estaremos enriquecendo o nosso ser. Também herança de nosso sistema capitalista, a produtividade de cada um se torna mensurável em dados e utilizada como critérios de seleção e de aptidão para sermos escolhidos em cargos nas instituições sociais, como a escola e o trabalho. Tudo acaba girando em torno de números e de frases pré-formuladas: “o que eu posso” e “o que eu não posso fazer”.
E a parte humana, as vivências e os aprendizados pessoais, onde se encaixam nisso? A resposta é que, na cultura capacitista, não há espaço para eles. Esses fatores são relegados a segundo plano, é como se não existissem. Tudo é uma eterna competição, um incansável exibicionismo de habilidades e aptidões.
Vamos dar um basta nisso? Não somos obrigados a atingir o ideal utópico de perfeição, porque, como toda utopia, esse ideal não existe e o ser humano não é, nem de longe, perfeito. Nosso ser, quem nós somos de verdade, não é definido pelo o que podemos ou não fazer.
Claro que a maior parte das deficiências físicas, ou qualquer outra, pode ser contornada com recursos, materiais ou humanos, de acessibilidade. O problema é que muitas pessoas se focam no motivo de se usarem determinados meios para se conseguir o fim almejado. O que deveria importar realmente é se a necessidade do indivíduo foi sanada ao se utilizar determinado recurso acessível, e não o porquê de precisar-se dele.
Por exemplo, eu, com Distonia generalizada, não tenho habilidades físicas para dirigir um veículo. Já ouvi o parecer de três ótimos médicos me explicando que, mesmo contando com carros totalmente adaptados, o risco de eu me acidentar ao dirigir continuaria elevado devido aos espasmos distônicos e às inconstâncias musculares que percorrem todo meu corpo.
Mas minhas necessidades de locomoção são supridas graças aos meus pais, amigos, profissionais monitores e ao transporte público. O fato de eu não poder dirigir por conta própria não faz de mim uma pessoa muito mais diferente do que qualquer outra. Todos têm suas próprias particularidades. Nossa diversidade funcional (uma expressão que substitui perfeitamente outras mais usadas, como “limitação” ou “incapacidade física”) não pode ser usada como medida única para definir quem somos, afinal, é apenas mais um fator variável nesse grande leque humano de diversidades existentes.
Lógico que, antes de ter essa compreensão de mundo que tenho hoje, passei por sentimentos de negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Afinal, deparar-se com uma deficiência é como vivenciar uma experiência de luto em relação ao próprio corpo. Mesmo para quem já nasceu assim, as expectativas sociais e a observação de si mesmo comparado com os outros impõem esse luto por uma suposta habilidade perdida.
No meu caso, ao completar 18 anos, comecei a reparar ainda mais na alegria das pessoas da minha idade ao tirarem sua própria carteira de motorista. Senti o ímpeto de querer tirar a minha também, me negando a ver todos os movimentos físicos que o ato de dirigir exige de qualquer pessoa. À primeira negativa que recebi de meus pais e do meu médico, me revoltei, e prometi que faria qualquer coisa ou tratamento que estivesse ao meu alcance para conseguir essa habilidade.
Então, após pesquisar e ouvir opiniões de mais especialistas na área, caí na real: em minhas condições, e com as atuais descobertas da medicina sobre discinesias, eu não poderia dirigir. Chorei, é claro. Mas, por fim, com o tempo, veio a aceitação. E principalmente a valorização de ter meus pais e demais pessoas que podem me ajudar nas minhas necessidades de locomoção.
Um jeito que encontrei para conseguir estar em paz comigo mesma e com essa minha diversidade funcional foi conversar sobre o assunto. Expressar-me e refletir a respeito do tema foram saídas terapêuticas que me ajudaram a superar minhas decepções e inseguranças. Hoje, posso ouvir tranquilamente amigos conversarem sobre suas experiências ao volante. Não nego que eu ainda gostaria de poder dirigir, mas encaro a realidade de forma tão natural a ponto de ter registrado essas reflexões na minha palestra do TEDxUnespBauru.
Creio que essa forma de lidar com as diversidades funcionais causadas pelos distúrbios de movimento é uma boa maneira de evitar dores emocionais ao se deparar com o assunto. Vamos encarar a vida com outros olhos. Focar nas soluções, nos recursos que temos para contornar os obstáculos que a deficiência nos impõe. E ter a certeza de que essa característica, por si só, não é capaz de definir o nosso valor como pessoas. Sejamos mais forte do que isso.
Temos que combater a cultura capacitista e o silenciamento das questões relativas às deficiências. A quebra de tabus só acontece se falarmos sobre os referidos temas. Que tal passarmos a utilizar mais a expressão diversidade funcional? Porque essa é, enfim, a beleza dos processos de ressignificação do mundo: trazer novos sentidos para o nosso dia a dia.
* Crédito da imagem: Pixabay.
Por Ana Raquel Périco Mangili.
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