Fórum sobre inclusão universitária ocorre na Unesp de Bauru/SP

Nesta última quinta-feira, dia 23 de agosto, às 19h, foi realizado o fórum “Universidade (D)eficiente”, no anfiteatro Antônio Manuel – Sala 1, da Unesp de Bauru/SP. O evento foi organizado por Ana Paula Camilo Ciantelli (pesquisadora de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da Faculdade de Ciências da Unesp, sob orientação da professora Lúcia Pereira Leite) e por estudantes universitários com deficiência: Paolla Vicentin, André Luiz Alves Guimarães, Rodrigo Sandoval, Caio Marques e Ana Raquel Périco Mangili.

O objetivo da ocasião foi promover debates a respeito da importância da inclusão e da acessibilidade no Ensino Superior brasileiro. Através de relatos de experiências dos próprios alunos da Unesp, o público presente no local pode conhecer um pouco mais da realidade dos estudantes com deficiência e refletir sobre o quanto a sociedade ainda precisa avançar para tornar a educação brasileira mais plural e acessível a todos. O evento contou ainda com interpretação em LIBRAS ao vivo.

Eu, Ana Raquel, autora do Blog Dyskinesis, participei da ocasião com o meu depoimento, e o disponibilizo na íntegra abaixo para quem se interessar.

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“Boa noite! Sou a Ana Raquel Périco Mangili, tenho 23 anos, moro em Barra Bonita. Graduei-me em março de 2017 em Jornalismo na FAAC e atualmente estou fazendo pós (especialização em Linguagem, Cultura e Mídia) na FUNDEB, também aqui na Unesp. Agradeço o convite da Ana Paula para dar o meu breve depoimento neste fórum, e também parabenizo os seus organizadores pela iniciativa deste evento.

Assim que eu vi um dos cartazes de divulgação do fórum, que tem as frases provocativas-reflexivas “O lugar do Deficiente não é na Universidade – O que você pensa sobre isso?”, ele me remeteu automaticamente a memórias minhas do tempo do ensino médio e pré-vestibular. Antes de entrar aqui na Unesp em 2013, eu não tive quase nenhuma acessibilidade na estrutura educacional dos lugares onde estudei.

Minhas deficiências física e auditiva são de nascença. Tenho Distonia generalizada e surdez bilateral severa. A Distonia me causa uma limitação de movimentos nos braços, e por isso eu necessito de uma monitora/cuidadora se fico muito tempo em algum lugar. Apesar de hoje o direito do estudante com deficiência de ter um monitor, sem custos adicionais, em sala de aula nos casos em que se faz necessário já estar garantido em leis, na década passada isto não era assim.

Meus pais, além de pagarem a mensalidade das escolas particulares onde estudei, também tinham que arcar com os custos (um salário) para contratarem monitoras para me acompanharem na escola. E, ainda por cima, tendo que ouvir de outros familiares o questionamento de se todos estes gastos comigo “valeriam a pena” ou “dariam retorno no futuro”. “Mais fácil por ela em alguma escola especial e não se preocupar tanto”, diziam alguns parentes, reforçando o discurso da segregação.

Um ano antes de ingressar no ensino médio, eu resolvi frequentar o ambiente escolar sem o suporte de profissionais monitoras, tendo apenas a ajuda de minha mãe nos intervalos da escola todos os dias. Nesta situação ficamos até o final do ensino médio, mas não sem eu me deparar com outro tipo de barreira: a comunicacional dentro da sala de aula. Professores exibiam vídeos didáticos sem legendas. Eu não consigo ter a compreensão auditiva de sons digitais devido ao grau da minha surdez. E, quando eu ia reclamar sobre a falta de acessibilidade auditiva com a diretoria da escola, ouvia sempre o mesmo discurso: “Nós temos cerca de trezentos alunos aqui, e só você com deficiência. Temos que priorizar os gastos em função da maioria. Não podemos despender recursos com legendagem só para você”.

Fazendo referência agora à frase do cartaz de divulgação deste fórum, tudo o que foi relatado me fazia sentir que meu lugar não era nem na escola de ensino médio. As pessoas ao meu redor tratavam a acessibilidade como um favor, e não como um direito. O meu direito e o de tantos outros alunos com deficiência de ter acesso à aprendizagem curricular básica e de terem a liberdade de escolher se vão seguir com os estudos na Universidade.

Entre 2010 a 2012, anos em que eu estava no ensino médio, eu não encontrava vídeos-aulas de cursinhos e canais didáticos legendados em lugar nenhum na internet. Eu me preparei sozinha para o vestibular utilizando-me de uma postura ativa nos estudos através da leitura e de consultas de dúvidas pontuais com os professores. Foi longe de ser fácil, e sei que muitos, infelizmente, não possuem o mesmo tipo de apoio familiar que tive, por isso a acessibilidade é de extrema importância para uma democratização do acesso ao Ensino Superior para as pessoas com deficiência.

Agora, falando sobre minhas experiências com inclusão e acessibilidade na Unesp de Bauru, realmente foi uma grande mudança em minha vida. Aqui eu tive o suporte de profissionais monitoras durante as aulas, um notebook disponibilizado para a minha escrita independente e a legendagem dos conteúdos audiovisuais didáticos exibidos em sala.

Além disso, pude realizar o sonho do intercâmbio tendo uma monitora e recursos de acessibilidade disponibilizados para mim pela Unesp em 2015, um caso sem precedentes de apoio ao intercambista brasileiro com deficiências nos graus que eu tenho. Representei também a Unesp em dois eventos acadêmicos latino-americanos sobre a temática da inclusão, tendo novamente o apoio da Unesp e das Universidades de Valparaiso e de Guadalajara com os recursos de acessibilidade, incluindo o da monitoria.

Mas claro que também houve alguns obstáculos nessa minha jornada pela graduação e, agora, pela pós-graduação. No vestibular Vunesp em 2012, tive minhas solicitações de notebook, profissional transcritor de gabarito e o tempo adicional de uma hora a mais atendidas, mas este tempo adicional de uma hora na segunda fase do vestibular não foi o suficiente para que eu pudesse terminar de responder a prova. Às vezes, o estado físico de meus movimentos dos braços piora e se torna muito mais lento, mesmo utilizando notebook para escrever. A minha sorte foi que priorizei responder as perguntas da área do curso escolhido e consegui não zerar nenhum dos cadernos de questões. Mesmo deixando algumas delas sem responder por falta de tempo, passei na primeira chamada de Jornalismo (período noturno) em 2013.

Na questão da acessibilidade auditiva, a grande maioria dos professores foi muito solícita em enviar os vídeos das suas disciplinas para a equipe do grupo de estudos MATAV aqui da Unesp legendar, e também aceitou utilizar meu Sistema de Frequência Modulada (FM) para transmitir as vozes deles direto aos meus aparelhos auditivos durante as aulas. Porém, ocasionalmente, havia uns poucos que julgavam que seus vídeos eram muito curtos ou não tão importantes e, por isso, não precisariam de legendas, mesmo que para mim elas fossem necessárias.

Agora, na pós-graduação, meus pais tiveram que voltar a me acompanhar nas aulas como monitores (eles se revezam nos dois dias de aulas da semana), porque a unidade responsável pela especialização na Unesp não conseguiu mobilizar verbas o suficiente para custear uma profissional monitora para mim igual a FAAC fez durante a minha graduação. Novamente, entra aí a questão da sorte de ter pais compreensivos e que fazem até o impossível, se necessário, para que eu continue estudando. Se não fosse este apoio familiar, eu não teria condições de estar hoje na pós-graduação e de ter superado também outras barreiras que encontrei em minha formação anterior devido à falta de acessibilidade.

Por último, e não menos importante, destaco a questão das barreiras atitudinais presentes na vida da pessoa com deficiência. O ambiente universitário não é composto apenas de estudos, mas também de interações sociais, como em qualquer outro lugar da vida cotidiana. O senso comum tende a acreditar que a universidade é um espaço onde as pessoas demonstram maior respeito e conhecimento de causas diversas, mas muitas vezes isto não é verdade. Não tive problemas desse tipo com professores e funcionários da Unesp, porém, o mesmo não posso afirmar em relação aos alunos.

O preconceito pode até não se manifestar de forma tão explícita, mas a maneira implícita dele é igualmente ofensiva. Vários estudantes daqui já se afastaram de mim no momento em que perceberam as limitações das minhas deficiências. Já me apontaram ao me ver sentada no campus e cochicharam entre si. E isso sem contar as formas explícitas de discriminação que vivi no ambiente universitário.

Durante meu intercâmbio na Universidad de Salamanca, na Espanha, um aluno do grupo brasileiro chegou na minha monitora e perguntou o porquê de eu estar ali, se eu era parente de algum professor ou funcionário da universidade, querendo dizer que eu estava ali de favor e não por ter passado no mesmo processo seletivo rigoroso que ele passou.

E, ainda recentemente, aqui na Unesp, uma pessoa disse-me diretamente que sentiu pena ao me ver do jeito que sou. Oi? (risos). As pessoas com deficiência de forma alguma deveriam ser dignas de pena, e sim de acessibilidade! De serem vistas de igual para igual e de terem as mesmas oportunidades de estudos e de vida do que os demais indivíduos, não acham?

Eu, particularmente, acredito que a Unesp é uma das universidades da região que mais procura avançar nas políticas e ações inclusivas. Ainda há muito a ser feito, claro, e este fórum, especialmente, é uma ótima oportunidade para debatermos tais questões. Vamos refletir e buscar tornar a universidade um lugar cada vez mais inclusivo a todas as pessoas. Muito obrigada!”.

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* Atualização do dia 04/09/2018: Rodrigo Sandoval, outro aluno da Unesp que participou da organização do evento, também disponibilizou por escrito o seu depoimento dado na ocasião.

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“Oi, meu nome é Rodrigo, tenho 21 anos, estou no quarto ano de Engenharia Civil na Unesp e fui diagnosticado com Sindrome de Asperger no final do ensino fundamental. O que isso quer dizer? Muitos de vocês não sabem e nem eu sei direito. Na verdade, ela faz parte do Espectro Autista, o que, de novo, pouca gente sabe o que é e ninguém sabe ao certo sua causa.

Como o próprio nome diz, é um espectro, ou seja, é algo amplo, abrangendo várias características diferentes, e quem faz parte desse espectro pode ter algumas ou várias dessas características. O meu é um caso mais leve, portanto, afeta praticamente a minha interação social, alguns sentidos como a fotofobia e meu apego a detalhes, principalmente na hora das provas. Se eu conseguir terminar 20 provas nessa faculdade antes de acabar o tempo, já é muita coisa.

Na verdade, eu precisei de uma hora a mais para o vestibular e, mesmo assim, não consegui terminá-lo a tempo. Não que eu não soubesse o conteúdo, até porque hoje eu estou aqui, e não acho que, com alguns anos de cursinho, eu conseguiria me adequar ao tempo me dado. Só estou aqui hoje porque indivíduos que se importaram com a inclusão de pessoas diferentes lutaram para me garantir esse direito.

Quando eu era menor eu sofri muito bullying e preconceito. Tinha poucos amigos, só porque eu era diferente deles e não conseguia iniciar uma interação social com ninguém. Hoje, pode-se dizer que eu encontrei muitos amigos na faculdade, pessoas com quem eu posso me abrir e confiar. Não acho que eu tenha mudado tanto para que minha vida se transformasse assim. A verdade é que encontrei pessoas boas que souberam me aceitar e que gostam de mim do jeito que sou.

Então, percebi que eu não era o problema, mas sim as barreiras atitudinais dos outros que não aceitavam a diferença como algo comum, o que dificultou bastante a minha adolescência, e acredito que também a de muitos outros que estão na mesma situação que eu. Como o Asperger não é visível fisicamente, talvez vocês possam conhecer alguém que tenha também e nem saibam, e que pode estar sofrendo por conta disso. Então, eu peço que sejam pacientes e tentem ter empatia com todos. Obrigado.”

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* Créditos das fotografias: Ana Paula Camilo Ciantelli e arquivo pessoa de Ana Raquel Périco Mangilil.

 

Por Ana Raquel Périco Mangili.

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