Na terceira parte desta grande reportagem, falamos sobre a interseccionalidade das categorias deficiência e sobrepeso/obesidade. Agora, daremos continuidade à série de artigos abordando outra categoria interseccional: a das pessoas com deficiência e de baixa renda.
Baixa renda e a falta de recursos
Segundo Ana Carolina Moraes, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Observações em Economia Criativa (NeoCriativa) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), a situação financeira de determinado grupo sócio-acêntrico é fator primordial para determinar a vulnerabilidade social deste.
A situação financeira de um grupo não diz respeito somente à renda, mas se refere também à moradia, infraestrutura dos bairros, acesso aos serviços de educação e saúde, por exemplo. Estamos falando de pessoas que têm uma renda baixa, que vivem em espaços acêntricos nas cidades – bairros que não tem ruas asfaltadas ou sistema de saneamento básico -, que têm acesso limitado à educação e aos serviços de saúde. Quanto mais vulnerável o grupo, pior são as condições de moradia e os acessos aos serviços básicos.
No caso das pessoas com deficiência, a situação se complica ainda mais quando precisam de serviços especializados para tratamento e reabilitação. Devaides Mendes, 42 anos, doméstica e moradora da zona rural de Japonvar/MG, tem um filho de 16 anos que tem um distúrbio de movimento, a Ataxia de Friedreich, desde os seus cinco anos de idade, e nunca teve condições de receber um tratamento adequado.

Devaides Mendes e seu filho. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
“Moro na zona rural e é muito complicado até para ir ao médico. Não tenho nem carro, e temos que pagar tudo, transporte, médico e muitas outras coisas. A cidade mais próxima é muito pequena e não tem nada do que meu filho precisa de tratamento especializado. Tivemos que ir para SP para ter o diagnóstico da doença, mas, por falta de dinheiro, deixamos o tratamento de lado. Meu marido trabalha na lavoura, porém, aqui no norte de MG quase não chove, por isso ganhamos pouco, e temos também mais uma filha. Até o benefício de Bolsa Família que eu recebia foi cortado, recebemos apenas o BPC do meu filho e ainda estamos pagando os custos da viagem a SP para o diagnóstico dele. Ele precisa de fisioterapeuta, fonoaudióloga, cardiologista, neurologista, além de cadeira de rodas e cadeira de banho. Não temos nada disso. Ele sente muitas dores e está atrofiando cada vez mais”, conta a mãe, que inclusive agradece desde já qualquer tipo de ajuda que os leitores desta matéria puderem oferecer à sua família.
Situação parecida é a de Renata* (nome fictício a pedido da entrevistada), 29 anos, aposentada e moradora de Natal/RN. Ela teve um Acidente Vascular Cerebral aos 10 anos de idade e, como sequela, adquiriu um distúrbio de movimento, a Hemidistonia. O médico indicou a ela, na época, que fizesse fisioterapia e uso de medicamentos, mas a família de Renata não tinha dinheiro nem para as passagens de ônibus.
Minha mãe era mãe solteira, tinha mais três filhos e trabalhava para pagar aluguel e comprar comida, senão morreríamos de fome. Sinto muita dor de cabeça, dor nas costas… E a cada dia que passa, meu lado esquerdo se retrai mais. Quando estou me sentido muito mal, vou ao posto de saúde para eles me encaminharem a um neurologista, mas demora muito para chamarem. Faz uns cinco meses que estou esperando um médico.
Já Eduardo* (nome fictício a pedido do entrevistado), 43 anos, aposentado, morador de Barueri/SP e que tem Distonia generalizada, conseguiu se submeter a uma cirurgia que implanta um aparelho neuromodulador no cérebro, a Estimulação Cerebral Profunda (Implante de DBS), através do convênio médico que tinha em 2014, mas passou a depender do SUS para dar continuidade à reabilitação. “Eu fiquei dois anos sem um neurocirurgião, e isso atrapalhou muito o tratamento”, relembra.
Até um senhor da Argentina, que ficou sabendo, pelo Facebook, da produção desta reportagem, quis dar o seu depoimento para mostrar que a burocracia na área da saúde também ocorre no sistema público de seu país. José Luís Guzmán tem 58 anos, é comerciante, mora em Córdoba e tem Distonia Cervical. O tratamento mais recomendado para este distúrbio de movimento é a aplicação periódica de toxina botulínica. José só conseguiu o produto duas vezes pelo sistema público.

José Guzmán. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
“Para conseguir a toxina botulínica, eu tinha que obter o pedido de um médico do hospital público, depois ir à assistência social e esperar um mês para recebê-lo. Deram-me o produto duas vezes, quando fui lá buscar pela terceira vez, me disseram que não estariam mais fornecendo para ninguém, porque havia pessoas que pediam o produto e usavam-no para fins cosméticos” (depoimento traduzido do espanhol pela jornalista).
A dificuldade em conseguir medicamentos pelo sistema público de saúde se estende, aqui no Brasil, também aos recursos de tecnologia assistiva. Vitor (sobrenome omitido a pedido do entrevistado), 67 anos, aposentado e morador de Indaiatuba/SP, utiliza um Implante Coclear desde 1990 para poder ouvir, pois tem surdez profunda em decorrência de um acidente de moto. O SUS mantém centros espalhados pelo Brasil inteiro que implantam tais dispositivos nos pacientes que precisam, mas até hoje é uma dificuldade imensa para conseguir o custeamento de reposição de peças ou da manutenção dos aparelhos, apesar de já estar em vigor uma portaria que determina legalmente a realização de tais procedimentos pelos centros de implante.
Meu aparelho já é um modelo ultrapassado, não se fabrica mais. Se ele quebrar, não sei como vou fazer para ouvir. Estou aguardando o retorno no centro onde fiz o implante para ver esta questão, mas eles ainda não agendaram minha consulta. A bateria recarregável do meu aparelho está falhando e não tenho condições de adquirir outra, pois custa 800 reais e precisa-se de duas, para usar uma enquanto a outra carrega e assim ir alternando no dia a dia. Por enquanto, uso mais as baterias descartáveis, que custam mais de 100 reais dez cartelas, e vou alternando com a bateria recarregável que tenho para não pesar muito no bolso, pois sou aposentado com salário mínimo.
Não é só para os aposentados na terceira idade que existe esta dificuldade financeira por receber apenas um salário mínimo. As pessoas que se aposentam por invalidez ou que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC) enfrentam o mesmo desafio. E muitos deles gostariam de trabalhar, mas não encontram oportunidades de emprego, mesmo buscando incessantemente. Este é o caso de Bernardo* (nome fictício a pedido do entrevistado), 32 anos, aposentado por insalubridade, morador de Santa Maria/RS e que tem Ataxia.
De renda só tenho a pensão do governo. Eu não gostaria de ter que depender disso, mas não tive oportunidade nenhuma. Ninguém dá emprego para quem tem Ataxia. Nunca consegui emprego formal, só trabalhos de voluntário e de estágio. E sempre corri atrás. De sair de madrugada e voltar à noite. Ouço muitas mentiras dos entrevistadores. ‘Amanhã te ligaremos’, e nunca retornam. Ou ‘A empresa é só da família’, mas eu tenho conhecidos que trabalham lá. Coisas assim, ou então perguntam se estou com frio ou nervoso (por causa dos tremores da Ataxia). Vejo reações ora de desprezo, ora de ignorância.
A pesquisadora Ana Carolina Moraes acredita que falta um melhor amparo do governo para a inserção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. “A Lei nº 8.213/1991 (Lei de Cotas), que regula a contratação de pessoas com deficiência nas empresas, é uma política de inclusão e representa um avanço, mas sozinha não é suficiente. Uma das principais justificativas de empresas para não contratarem pessoas com deficiência é a falta de capacitação para o mercado. Se isso tem sido fator de exclusão numa política de inclusão, então é preciso pensar sobre, criar políticas públicas para incentivar a preparação de pessoas com deficiência para o mercado de trabalho por meio de ações governamentais”.
Os preconceitos enfrentados por esta categoria
Estar em situação de baixa renda pode, muitas vezes, dificultar a busca por direitos e justiça social. Bernardo cursa uma faculdade com bolsa de estudos, e não pode denunciar os preconceitos que vivencia lá, por parte de outros alunos, pois a instituição alega que ele perderia o direito à bolsa.
Quando entrei no curso, fui apelidado de ‘cachorrinho paraguaio’ por causa do tremor no pescoço. Um dia, me trancaram num elevador e se puseram a rir e me imitar enquanto faziam gestos obscenos. Os diretores de lá foram corporativistas. Eles alegaram que, se eu denunciasse, perderia minha bolsa de estudos. Ou eu ficava quieto ou ia ter problemas. Isso dentro da diretoria do curso, porque o caso nem chegou à coordenação da universidade. A universidade não pune, sequer há um programa ou uma política nesse sentido.
A falta de informações sobre algumas deficiências também pode ser motivo de preconceito por pessoas da própria família. Renata conta que passou até por situações de violência física. “Minha família não gosta de sair comigo. Minha mãe tem vergonha de mim, diz que isso é coisa da minha cabeça, que eu quero me fazer de vítima. Saí de casa porque meu padrasto me bateu e ela ficou do lado dele, disse que era mentira quando chamei a polícia”.

Madalena Martins. Crédito da imagem: arquivo pessoal.
Madalena Martins, 40 anos, aposentada, moradora de Belo Horizonte/MG, e que tem um distúrbio de movimento chamado Doença de Wilson, diz que uma pessoa de sua própria família acha que sua deficiência é contagiosa. “Quando ela vem aqui em casa, parece ter nojo. Traz sempre sua jarra de água e faz xixi em pé para não encostar onde uso. Até já mostrei um laudo médico para ela, atestando que a Doença de Wilson não é contagiosa, mas ela fala que eu não tenho isso, e sim muitos demônios no corpo”.
Acompanhe a seguir a continuidade desta grande reportagem, com o artigo sobre a interseccionalidade na vida das pessoas LGBTQIA e com deficiência.
Por Ana Raquel Périco Mangili.
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