As múltiplas discriminações na vida da pessoa com deficiência – Parte VI

Na quinta parte desta grande reportagem, falamos a respeito da interseccionalidade das categorias deficiência e LGBTQIA (sigla que representa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais e Assexuais). Agora, no artigo de hoje, abordaremos outra categoria interseccional: a das pessoas com deficiência e ateias.

O Ateísmo no Brasil

De acordo com pesquisas mais recentes, como a da Datafolha, feita em dezembro de 2016, 1% dos brasileiros são ateus (e cerca de outros 14% não têm religião). Comparado com outros países, como a Suécia, onde 85% da população é ateia, o movimento no Brasil é extremamente pequeno e não conta com muita visibilidade à causa.

Daniel Sottomaior, engenheiro civil e presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), explica que, inclusive, não há representatividade política para os ateus brasileiros. “A aceitação social continua calamitosa. Somos as pessoas mais detestadas do país. As redes sociais é que acabaram se tornando o grande fator de alavancagem da visibilidade ateísta no dia a dia dessa comunidade brasileira”, defende.

Apesar do Brasil ser um país teoricamente laico, boa parte de sua população não reage bem quando se depara com alguém cujas crenças religiosas (ou a ausência delas) se contrasta diretamente com as suas. “Ainda há grande rivalidade entre religiões, algumas são dominantes e outras minoritárias são discriminadas. O mesmo ocorre com os ateístas. Apesar de certa valorização das minorias, isso não significa afirmar que a intolerância tenha deixado de existir e de ser dominante”, completa o Prof. Dr. Célio José Losnak, historiador e professor universitário da Unesp de Bauru/SP.

Os ateus com deficiência

Ao contrário de outras categorias interseccionais que apresentam marcadores corporais visíveis, as pessoas ateias muitas vezes conseguem passar despercebidas em ambientes de pouca tolerância à sua manifestação. “O ateísmo não é tão evidente, e por isso fica menos vulnerável à discriminação. Um ateu com deficiência tenderá a ser menos discriminado do que os outros grupos que possuem marcas corporais explicitas suscitadoras de discriminação”, diz o professor Célio José Losnak.

Mas, quando tais pessoas decidem expressar sua posição ateia publicamente, enfrentam o preconceito assim como as demais categorias interseccionais. Por este motivo, muitos ateus também costumam utilizar a expressão “sair do armário”, mais empregada no meio LGBTQIA, para denominar o momento de afirmação e defesa públicas de seu ateísmo.

Marcelo de Paula. Crédito da imagem: arquivo pessoal.

Marcelo de Paula, 31 anos, controlador de materiais, morador de São José dos Campos/SP, que tem deficiência auditiva bilateral profunda e é usuário de Implante Coclear, conta que levou alguns anos para se afirmar como ateu publicamente.

Eu sempre fui curioso e questionava as pessoas de outras religiões. Comecei a ver que nenhuma religião fazia sentido. Todas tinham suas diferenças. E, por não concordar com muitas coisas que a igreja prega, eu resolvi cair fora com 28 anos. Mas já estava há mais de cinco anos no ‘armário’, não sei o porquê demorei tanto.

Para os indivíduos ateus e com deficiência, aos discursos discriminatórios tradicionais enfrentados se acrescentam a culpabilização da própria deficiência pelo fato de não acreditar em Deus e a associação do ateísmo com uma possível revolta com a condição física/sensorial/intelectual em que a pessoa se encontra, como exemplifica Marcelo de Paula.

Já me perguntaram se sou revoltado e terminaram dizendo que Deus me ama de qualquer forma. Ouvi também várias pessoas religiosas dizerem que sou surdo por ter um demônio dentro de mim e que, se eu tivesse fé e fosse orar na igreja deles, Jesus iria me curar. Enfim, o preconceito existe de todos os lados, mas o pior é aquele manifestado por estranhos, porque quem me conhece sabe que sou de boas com a vida.

Para Hemerson Carlos Araújo da Silva, 35 anos, que trabalha de garçom, mora em São Paulo e perdeu a audição do ouvido esquerdo, o olfato e o paladar em decorrência de pancadas na cabeça durante um assalto há seis anos, o ateísmo também é algo que veio naturalmente em sua vida e não possui relação com as suas deficiências.

Hemerson Carlos Araújo da Silva. Crédito da imagem: arquivo pessoal.

Nunca fui muito religioso, fiz o catecismo apenas por capricho dos meus pais, sempre fui bem cético com o assunto. Depois da morte do meu pai, em 1994, fiquei bem afastado de tudo isso e, na adolescência, vi o ateísmo de forma mais racional. Porém, já ouvi das pessoas, a respeito do meu ateísmo, as frases de sempre: ‘você é maluco, herege, é modinha e vai no embalo dos outros’. Mas sou tranquilo neste quesito, eu me adapto bem aos ambientes em que estou. Por exemplo, no meu último emprego, onde passei sete anos, eu trabalhava com seis Testemunhas de Jeová e dois Cristãos, e nunca nos desentendemos.

 

A série sobre interseccionalidades na vida da pessoa com deficiência acabou? Você é quem decide! Estamos aceitando sugestões dos leitores sobre outras categorias interseccionais que gostariam de ver retratadas aqui. Para sugerir alguma, basta mandar um e-mail para dyskinesis.blog@gmail.com ou acessar o formulário de contato do blog. Aguardamos a sua sugestão para ampliarmos nossa série e darmos vozes a mais pessoas com deficiência!

 

Por Ana Raquel Périco Mangili.

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