O que podemos aprender com o tema da redação do ENEM 2017?

Como a maioria já deve saber, o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio deste ano, divulgado e realizado no último dia 05, foi “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”. Sei que o Blog Dyskinesis é voltado para assuntos envolvendo as deficiências físicas conhecidas como discinesias, mas devido à ampla repercussão que o tema do ENEM teve nos últimos dias, e também atendendo a pedidos dos próprios leitores do blog, trago agora uma reflexão para analisarmos, que envolve não só a pessoa com deficiência auditiva, mas à grande categoria dos indivíduos com deficiência de forma geral.

Primeiramente, vou fazer observações sobre a prova e, depois, sobre as reações dos candidatos e da sociedade de forma geral. Todo ano, o ENEM traz alguns pequenos textos para o estudante usar como base ao elaborar sua redação. A prova de 2017 seguiu o padrão, e trouxe quatro pequenos fragmentos textuais: um trecho da Constituição Brasileira que fala sobre o direito à educação bilíngue (Português-LIBRAS), um gráfico sobre as matrículas de surdos na Educação Básica, uma propaganda de valorização às diferenças e um trecho sobre a história da educação de surdos no Brasil.

A escolha do tema, por si só, foi louvável. Trazer o debate sobre Educação Inclusiva para a realidade dos estudantes brasileiros é um grande primeiro passo para naturalizar e dar a devida atenção às questões sociais desta parcela da população. Nem preciso falar quantas dificuldades devem passar as pessoas que usam a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como primeiro idioma quando não há intérpretes ou materiais didáticos adaptados em salas de aula onde só se transmite conteúdos em português.

Porém, faltou, na prova, dar visibilidade para as necessidades das pessoas que também têm deficiência auditiva, mas que não utilizam a LIBRAS: os surdos oralizados (chamados, pela maioria, de deficientes auditivos). Mesmo utilizando aparelhos auditivos, Implante Coclear ou outras tecnologias assistivas, eles podem encontrar dificuldades (e muitas!) para entender os sons ouvidos na íntegra. Afirmo isso com propriedade porque eu mesma faço parte desta categoria: além de ter Distonia, eu tenho também surdez severa bilateral. E não sou fluente em LIBRAS.

Há vários motivos para um deficiente auditivo ser oralizado, que vão desde o costume da família ou da própria pessoa (que pode ter perdido a audição após ter aprendido o português como idioma materno) ou também devido às barreiras físicas (ter outra deficiência que afete a mobilidade dos braços, por exemplo). Independentemente do motivo, a pessoa com deficiência auditiva e oralizada também precisa de acessibilidade, mas com recursos um pouco diferentes daqueles utilizados por quem é usuário da LIBRAS. Precisamos de legendas em português e/ou da possibilidade de realizarmos leitura labial nos conteúdos audiovisuais didáticos. Precisamos também de recursos tecnológicos, como aparelhos auditivos, Sistemas FM, entre outros que nos ajude a ouvir melhor.

Entendem aonde quero chegar com isso? Há diversidade dentro da diversidade! Afirmar que um intérprete de LIBRAS basta para incluir todos os surdos na educação é a mesma coisa que se eu falasse que bastaria fornecer uma cadeira de rodas para todas as pessoas com distúrbios de movimento, para ajudá-las em sua mobilidade (e os indivíduos com dificuldades somente na mobilidade dos braços, como ficam?). Uma ação só não é o suficiente para incluir todas as pessoas, independentemente do tipo de deficiência. Mas foi nesta linha de pensamento que se baseou a maior parte das redações do ENEM divulgadas até agora. Até porque os próprios textos-base da prova fizeram menções mais à LIBRAS do que às tecnologias assistivas.

E agora, vamos falar sobre as reações gerais ao tema da redação deste ano. Esperei uma semana para publicar esta reflexão no Dyskinesis justamente por isto, para poder ter tempo de observar os impactos que a escolha do tema iria provocar nos estudantes. Assim que foi divulgado o tema da redação no domingo passado, minha irmã, que não tem deficiência mas que convive comigo desde que nasceu, começou a comemorar e também previu um pouco das reações negativas de quem não tem conhecimento da causa como nós.

O que esperávamos então, de fato aconteceu. Pessoas reclamando nas redes sociais sobre a dificuldade de escrever sobre o tema, falando até que não foi justo solicitar conhecimento desta causa a alunos de ensino médio. Ou pior ainda: estudantes fazendo piadas e dirigindo xingamentos públicos aos surdos (acredite, vi vários prints e exemplos dessas baixarias no Facebook e no Twitter).

Ora, por que foi difícil para estas pessoas escreverem sobre o tema? Porque elas nunca deram a mínima para a inclusão social! Falar que isto não faz parte do seu dia a dia não é justificativa válida. Acho um absurdo estudantes esperarem escrever uma redação sobre Oriente Médio ou problemas em países lá do outro lado do mundo, mas reclamarem ao terem que refletir sobre a realidade de quase 10 milhões de brasileiros com deficiência auditiva!

Esta atitude tem um nome, e se chama Capacitismo. O preconceito contra pessoas com deficiência vai além de atitudes explícitas diariamente nas ruas. Capacitismo é também achar que a temática das deficiências não faz parte da sociedade, que só devem se preocupar com elas os atingidos diretamente por uma deficiência. Pensar desta maneira não é promover a inclusão, e sim a segregação. Por que podemos falar de imigração, de problemas no Oriente Médio, de pessoas indígenas e tantas outras no ENEM, mas não de pessoas com deficiência e sua demanda por acessibilidade?

A falta de empatia é um problema generalizado em nossa cultura: há dificuldades de se colocar no lugar do outro e ter a consciência de que você também pode adquirir uma deficiência algum dia. Infelizmente, não vai ser uma única redação do ENEM que vai mudar isto. Claro, o primeiro passo já foi dado, porém, precisamos continuar a trazer a temática para as salas de aulas e para os espaços públicos. Não só alunos precisam ser conscientizados, mas também os professores, diretores e demais membros de nossa sociedade como um todo.

Por Ana Raquel Périco Mangili.

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