É possível viajar tendo um distúrbio de movimento? Utilizando recursos de acessibilidade, é perfeitamente possível sim para uma pessoa com deficiência realizar o sonho de uma viagem ao exterior com autonomia e dignidade. Claro que o fator monetário pode pesar, e muito, nesse objetivo. Mas, se você é aluno de ensino médio ou superior e sua instituição promove ou participa de programas de intercâmbios acadêmicos gratuitos, você pode se candidatar aos editais e, se for selecionado, solicitar o auxílio de recursos de acessibilidade para a viagem, sem custo adicional nenhum, pois essa é uma das premissas da Educação Inclusiva brasileira: a igualdade no acesso à educação por alunos com e sem deficiências.
Vou contar sobre a minha experiência de intercâmbio, realizada no mês de julho de 2015 na Universidad de Salamanca/Espanha. Durante o segundo ano do ensino médio, em 2011, conheci alguns intercambistas na escola onde eu estudava, e com isso desenvolvi a curiosidade e a vontade de passar pela experiência de estudar em outro país. Tive que adiar esse plano, porque, na época, nenhuma agência ou ONG que promovia o intercâmbio no ensino médio oferecia ou mencionava recursos de acessibilidade para alunos com deficiência poderem viajar. Além de minha surdez moderada, eu tenho Distonia, um distúrbio de movimentos que causa incapacidade motora para algumas tarefas do dia a dia, pois afeta sobretudo a mobilidade de meus braços e pescoço. Sendo assim, a presença de uma monitora para viagens é algo indispensável para mim.
Com a entrada no curso de Jornalismo da Unesp de Bauru/SP, meu sonho foi adquirindo forças e, tendo cada vez mais ciência de meus direitos como cidadã brasileira com deficiência, no terceiro ano do curso, com 20 anos, me inscrevi no processo seletivo do Programa TOP Espanha 2015, promovido pelo Santander Universidades e divulgado pela Unesp.
Por que escolhi a Espanha para meu intercâmbio? Desde pequena, eu tinha o desejo de conhecer o continente europeu, a terra dos contos medievais e dos castelos com os quais eu sonhava. Também, tenho como segunda língua o Espanhol: comecei o curso desse idioma com nove anos, antes mesmo de receber meus primeiros aparelhos auditivos. Fiz quatro anos de curso, e mais três anos de espanhol no ensino médio. Sempre gostei dessa língua, apesar de nunca ter tido experiências de conversação fora das aulas.
Então, o Programa TOP Espanha foi uma grande oportunidade, e também contribuiu para isto o tempo de sua duração: quase quatro semanas. Para quem nunca tinha viajado para o exterior e tem sempre a família por perto, este período era perfeito para uma primeira jornada. Eu poderia tirar férias de um mês do meu estágio na ADAP, e também dar uma pausa nos meus tratamentos, sem prejudicar minha saúde. Após passar pela segunda etapa do processo seletivo, eu fui selecionada pela Unesp para a viagem. Mal pude acreditar na hora, porque a concorrência era grande e também era a primeira vez que eu tentava um intercâmbio. Minha felicidade foi imensa!
Tão logo passei na seleção, meu pedido para conseguir o custeamento, pela Unesp, de uma monitora para a viagem foi aprovado, outra grande vitória. Pude escolher minha antiga professora, que me conhecia desde criança e que me ajudava nas aulas com a pronúncia do espanhol naquela época, para me acompanhar no intercâmbio. Jorgita já estava acostumada com a minha voz, que possui alterações devido às complicações da Distonia, e também com as minhas necessidades físicas, o que facilitou todo o processo de segurança e adaptação no exterior.
Os preparativos para a viagem começaram bem antes, com orientações da fisioterapeuta, aplicação de Botox para controlar a Distonia e checagem dos meus aparelhos auditivos. Também dei uma rápida revisada por conta própria no meu espanhol, pois fazia três anos que não o praticava. Minha audição apresenta variações no desempenho devido a um intenso zumbido e às contrações dos músculos da cabeça e pescoço, oriundas da Distonia, então eu quis ter a segurança de relembrar todas as regras do espanhol escrito que eu já tinha aprendido nos anos anteriores.
O intercâmbio ocorreu do dia 29 de junho ao dia 23 de julho. Os selecionados pelo Programa embarcaram no Aeroporto de Guarulhos/SP com destino à Madrid. O voo teve duração de dez horas, e como foi a primeira vez que voei, fiquei muita ânsia e tontura durante a viagem toda (na volta foi bem mais tranquilo). E adorei sentir-me levantando do chão, ver as cidades de cima e tirar fotos das nuvens.
Chegando a Madrid, já no dia 30 de junho, na hora de pegar as bagagens, Jorgita e eu ficamos desesperadas sobre como iríamos carregar rapidamente três malas de rodinhas e quatro bolsas de mão até o ônibus (coisa de mulheres mesmo levar tanta mala assim, hehe). E então uma gentileza transformou esse momento: rapazes do nosso grupo, alunos do Exército, se ofereceram para nos ajudar. Obrigada novamente pela ajuda, meninos!
O grupo visitou um café e uma praça em Madrid antes de seguir viagem de ônibus até Salamanca, a cidade universitária. Meu jet lag após o voo foi terrível, quase dormi de pé, meus olhos queimavam e saíam lágrimas de cansaço. Mas, assim que chegamos a um dos alojamentos da Universidad de Salamanca, fiquei maravilhada. É muito parecido com os das universidades americanas vistos em filmes, com muito verde, estudantes sentados nos campos conversando em grupo, refeitório e áreas comunitárias, como academia e salas de estar, e uma energia incrível. Foi um sonho se realizando!
A Universidad de Salamanca foi a primeira a ser criada no país, é uma instituição de ensino superior pública que completará 800 anos em 2018, e oferece cursos de espanhol para estrangeiros. Fizemos a prova de nivelamento do idioma no dia primeiro de julho (em relação à minha monitora, ela e eu fomos avaliadas separadamente, claro). O teste avaliou até minha conversação em espanhol. Com um pouco de insegurança devido às minhas dificuldades auditivas e de fala, porque o curso envolvia total comunicação em outro idioma, fui surpreendida com o resultado da classificação, na tarde do mesmo dia: passei no nível Intermediário e estava pronta para cursar o nível Avançado de Língua Espanhola. Eu não poderia ter ficado mais feliz naquele momento!
O curso ocorreu do dia primeiro ao dia 21 de julho, com aulas das nove ao meio-dia (duas horas de língua espanhola, e uma de cultura do país), e tarefas diariamente. Nos finais de semana, eu sempre ia a excursões para cidades próximas (Segovia, Ciudad Rodrigo) ou a Portugal. O campus universitário de lá de Salamanca não é delimitado como no Brasil, as aulas aconteciam em diferentes prédios no centro histórico da cidade e, portanto, tínhamos que caminhar certas distâncias todo dia. Eu me canso com mais facilidade ao realizar atividades físicas, mas ainda bem que os espanhóis possuem o hábito da Siesta (repouso) depois do almoço, hehe.
As aulas foram muito produtivas auditivamente. Com a leitura labial e o uso do Sistema FM, pude compreender quase tudo do que era dito em sala. Claro que, no começo, leva um tempo para você se acostumar e desapegar do português, mas até que a minha adaptação foi rápida. Os professores utilizaram alguns áudios e vídeos nas aulas, porém, a maioria era de músicas com a letra ou de atividades com roteiros, de modo que eu conseguia acompanhar tranquilamente. Eles sempre davam um jeito de me passar o conteúdo audiovisual por escrito para eu não ficar perdida nas atividades auditivas. O resultado é que retornei ao Brasil até cantando em espanhol, hihi.
Infelizmente, essa boa compreensão auditiva não ocorreu nas excursões guiadas na cidade. Com o movimento corporal constante (e as alterações musculares causadas pela Distonia na região do pescoço), o cansaço e a interferência dos sons ambientais, mesmo utilizando o FM eu entendia poucas palavras que eram ditas pelo guia. Minhas alternativas eram pedir ajuda para minha monitora sobre algumas informações e focar em aproveitar as visitas da forma mais visualmente possível.
Em relação à minha fala, eu pronunciei bem o espanhol, tanto que até paguei mico em sala de aula, ao fazer um comentário no idioma sobre uma piada interna para minha monitora, achando que não seria entendida pelos demais, mas como falo alto sem perceber, a classe toda riu junto, hehe. Porém, também passei lá por situações já vividas aqui no Brasil, como quando as pessoas não entendem o que falo e se dirigem à minha monitora para conversar, e não a mim. Mas isso é facilmente resolvido na base da conversa e da orientação.
As ruas de Salamanca são movimentadas, sobretudo à noite. Por ser uma cidade maior, o povo dificilmente fica te encarando na rua se você possui uma deficiência aparente, como ocorre rotineiramente comigo na cidade brasileira onde vivo. Inclusive, numa situação muito fofa que me ocorreu lá um dia, eu estava esperando o semáforo abrir, na calçada, junto com minha monitora, e uma menininha de uns quatro, cinco anos, que estava de mãos dadas com sua mãe, pegou na minha mão direita, que eu quase nem uso, para atravessar a rua. Own!
Durante minha estadia em Salamanca, também avistei algumas vezes pessoas utilizando aparelhos auditivos, e até um senhor com, provavelmente, Distonia. O centro histórico da cidade possui um asfaltamento com paralelepípedos, e ainda assim vi paraplégicos transitando por lá. Aí já não tenho como dar uma avaliação exata das dificuldades enfrentadas por quem é cadeirante naquele local, porque nunca utilizei cadeira de roda, mas imagino que deve ser um desafio e tanto.
Uma situação que achei injusta foi no aeroporto de Madrid, onde apenas as pessoas que usam cadeira de roda possuem prioridade de atendimento. Eles não consideram as pessoas com mobilidade reduzida como deficientes, nós temos que ficar um tempão de pé na fila, com dores (e no meu caso, espasmos também), esperando para sermos atendidos. Realmente, isso foi algo que deixou muito a desejar, comparado com o Aeroporto de Guarulhos, em que a prioridade é válida para todos os tipos de deficiência.
Eu não poderia deixar de contar também sobre minha breve ida a Portugal, nos dias 04, 05 e 12 de julho (nesse último dia, fui à Praia de Aveiro em excursão). Antes de ir para a Espanha, eu já havia entrado em contato com o Sr. Ricardo Miranda, Presidente da Associação OUVIR em Lisboa, com o objetivo de estabelecer uma parceria entre essa instituição e a ADAP. Sempre quis conhecer Portugal, e o amigo Ricardo fez a grande gentileza de apresentar, para minha monitora e eu, o seu país. Lá encontrei também o amigo Sérgio Rodrigues e a encantadora Alice Inácio, uma das principais ativistas em prol do custeamento do Implante Coclear pelo governo de seu país. Amei conhecer o Rio Tejo, sobre o qual tanto se fala nos poemas portugueses que já li. Foi um prazer enorme visitar Lisboa e região e estar entre amigos, agradeço muito ao Ricardo, e também ao Sérgio e à Alice, pela oportunidade e companhia.
Em relação à Praia de Aveiro, foi um local incrivelmente bonito de se visitar. A água do mar é muito, muito fria. Mal pude entrar, porque, mesmo com sol, você acaba passando frio se ficar com a roupa de banho molhada por muito tempo. É algo típico do clima europeu. Mas, nas cidades interioranas que visitei, tanto de Portugal quanto da Espanha, o calor do verão estava até insuportável se você ficasse muito na rua. Neste aspecto, lembrei-me bastante do Brasil, hehe.
Bom, creio que é isso. Dia 21 de julho recebi meu certificado de nível Avançado de Espanhol, e na tarde do dia 22 o grupo embarcou de volta ao Brasil, chegando na manhãzinha do dia 23 de julho. Minha saudade da família e dos amigos era imensa, hihi. Agradeço do fundo do coração a todos que participaram e me apoiaram nessa viagem: família, profissionais que cuidam da minha saúde, a monitora Jorgita, a equipe Santander e o grupo de alunos e professores, o pessoal da Unesp, da ADAP e da Universidad de Salamanca, amigos brasileiros, portugueses e espanhóis. Sem vocês, tudo isso não teria sido possível. Muito obrigada!
Por Ana Raquel Périco Mangili.
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