Nos anos de 2015 e 2016, fui convidada para encontros da Red Interuniversitaria Latinoamericana y del Caribe sobre Discapacidad y Derechos Humanos (veja aqui e aqui) para contar minhas experiências com a acessibilidade no ensino superior, sendo estudante com deficiências múltiplas. Vou compartilhar abaixo um pouco do meu relato com vocês, para ilustrar algumas opções (e direitos!) que os alunos brasileiros com distúrbios de movimento podem ter para vencer as barreiras físicas do ambiente escolar e universitário.
Eu comecei definitivamente a frequentar a escola com cinco anos de idade. Antes disso, quando eu tinha três anos, fui durante alguns meses em uma escolinha infantil, mas uma queda na gangorra do parquinho, na hora do recreio, me trouxe um trauma na época e minha mãe só me pôs de volta na escola com cinco anos. Sempre frequentei estabelecimentos regulares e particulares de ensino, e as adaptações físicas eram feitas sob a orientação da minha fisioterapeuta.
Desde a época dos três até os 12 anos, eu tive uma monitora exclusiva que me acompanhava nas aulas, para me ajudar nos cuidados pessoais e a copiar no caderno o material da lousa. Encontrei pouquíssimas dificuldades em relação a andar sozinha, a questão principal sempre foi a coordenação motora dos braços e pescoço. Hoje, com a Lei Brasileira da Inclusão (LBI), é dever das escolas públicas e privadas fornecer esse profissional monitor para o aluno com deficiência que necessite desse recurso, e sem cobrar da família gastos adicionais nenhum! Infelizmente, no meu tempo de ensino fundamental (2000-2009), a situação era diferente. A minha sorte foi que meus pais fizeram de tudo para conseguirem manter por conta própria esse tipo de profissional ao meu lado na escola.
Ocasionalmente, eu precisava de adaptações em mesas e cadeiras, que tinham que ser um pouco maiores por causa da minha movimentação corporal excessiva. Durante os primeiros anos do ensino fundamental, eu usava engrossadores de lápis e tesouras adaptadas pela minha fisioterapeuta, que também orientava a escola a me passar atividades de escrever, colorir e recortar como tarefas diárias para treinar minha coordenação. Até uns oito anos eu conseguia copiar sozinha o material da lousa, por não serem muitos os textos que as professoras passavam.
Com oito anos, também passei a usar óculos, pois meu grau de miopia estava aumentando. Quando o uso da leitura labial, técnica que aprendi sozinha, não me possibilitou mais acompanhar as conversas e outras atividades sonoras com tanta eficiência, e descobrimos enfim minha deficiência auditiva, eu recebi, aos nove anos de idade, meus primeiros aparelhos. Aos 12 anos, ganhei também meu primeiro notebook para obter mais independência na escrita. Dos 13 até os 17 anos, frequentei a escola sem o auxílio de monitores, apenas com minha mãe indo me ajudar diariamente na hora do intervalo, e eu copiava o material escolar no notebook ou tirava xerox dos cadernos de amigos.
Durante a adolescência, descobri minha paixão pela comunicação escrita e, como sempre gostei de ler, resolvi fazer dessas duas atividades minha escolha profissional. Ganhei um concurso nacional de redação no ensino médio, e com 18 anos de idade prestei alguns vestibulares para o curso de Jornalismo. Passei em três universidades públicas brasileiras, entre elas, a UNESP. Esta Universidade me deu todo o suporte relativo à acessibilidade desde o momento do vestibular. Para fazer as provas, tive que solicitar três recursos: um tempo adicional, devido à minha lenta mobilidade dos braços, um notebook, para eu escrever as questões dissertativas da prova, e um monitor, para transcrever o gabarito das questões de múltipla escolha. Todos os meus pedidos foram prontamente atendidos.
Assim que recebi a notícia de minha aprovação no vestibular, houve uma reunião na UNESP, na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – FAAC, para que eu pudesse especificar quais recursos acessíveis eu precisaria durante todo o curso. Minhas solicitações foram: um notebook para me dar independência na escrita acadêmica, disponibilidade de mesa e cadeira adaptada, legendagem de todo conteúdo audiovisual passado durante as aulas e uma monitora que me acompanhasse no curso (porque a Universidade se localiza em outra cidade, bem longe da minha). Além disso, todos os professores aceitaram utilizar o transmissor do meu Sistema FM, que comprei quando entrei na Universidade, para me ajudar a ouvir melhor.
A Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp fica na cidade de Bauru/SP, e eu moro a 80 km de lá, em Barra Bonita. Então viajo de segunda a sábado em ônibus/van para estudar. Até o começo do terceiro ano do curso, minha mãe me acompanhava diariamente nesse trajeto Barra-Bauru. Hoje vou sozinha no ônibus, e a monitora da UNESP me espera no ponto em frente à Universidade para me acompanhar a partir de então.
A Unesp mantém atualmente três bolsas para alunos da própria Universidade trabalharem me auxiliando na questão da acessibilidade. Uma dessas bolsas é para o trabalho de legendagem, coordenado pelo grupo de pesquisas Mídia Acessível e Tradução Audiovisual – MATAV, sob orientação da Professora Doutora Lucinéa Villela. Alunos da Universidade são quem produzem as legendas dos conteúdos audiovisuais ministrados durante as aulas, para que eu possa ter acesso aos áudios desses materiais acadêmicos.
Já as outras duas bolsas são destinadas, pela FAAC, ao serviço de monitoria durante as aulas. Cada monitora, que também são alunas da Unesp, me auxilia durante três dias da semana, pois tenho aulas de segunda a sábado. Este trabalho é muito importante para a minha independência e movimentação autônoma dentro do campus. Com todos esses recursos de acessibilidade proporcionados pela UNESP, tenho um acesso igualitário ao curso de Jornalismo em relação aos outros estudantes sem deficiência.
A Unesp conta com o projeto “Acessibilidade no Ensino Superior: da análise das políticas públicas educacionais ao desenvolvimento de mídias instrumentais sobre deficiência e inclusão” financiado pelo Programa Observatório da Educação – OBEDUC (Edital nº 49/12 – OBEDUC/CAPES), sob a coordenação da Dra. Sandra Eli Sartoreto de Oliveira Martins (PPGE/FFC- Unesp/Marília) e da Dra Lúcia Pereira Leite (PPGPDA/FC-Unesp-Bauru) vem trabalhando a temática desde o ano de 2013 e contribuindo com avanços na área no país.
Eu também tenho a oportunidade de fazer estágio em Assessoria de Imprensa na Associação dos Deficientes Auditivos, Pais, Amigos e Usuários de Implante Coclear – ADAP. No final de 2013, quando eu estava terminando o primeiro ano de Jornalismo, foi anunciado, dentro do ambiente acadêmico da UNESP, que a organização não governamental ADAP estava contratando estagiários em Comunicação.
Passei pelas duas etapas do processo seletivo e, no começo de 2014, fui chamada para iniciar meu estágio na entidade, que me forneceu opções de acessibilidade para possibilitar o meu trabalho na instituição, pois a ADAP também se localiza em Bauru/SP. Eu não teria como estar presente lá todas as tardes, porque não há ônibus Barra-Bauru fora do horário de aulas. Sendo assim, a ONG concordou em me permitir produzir as matérias jornalísticas e demais trabalhos de assessoria em casa durante quatro dias na semana, e comparecer à instituição à tarde de um dia na semana, levada de carro por meu pai. Na ADAP, sou responsável pela produção de reportagens e entrevistas para o site e para as páginas da entidade nas redes sociais.
Para encerrar esse relato, falta contar sobre o meu intercâmbio na Universidad de Salamanca. A viagem foi realizada na ocasião de um curso de três semanas de cultura e língua espanhola, ofertado pelo Programa TOP Espanha 2015 Santander Universidades, e o apoio da Unesp, com o oferecimento de recursos de acessibilidade foi fundamental. O intercâmbio ocorreu do dia 29 de junho ao dia 23 de julho, com aulas das nove ao meio-dia (duas horas de língua espanhola, e uma de cultura do país), e tarefas diariamente. Nos finais de semana, eu fui a excursões para cidades próximas (Segovia, Ciudad Rodrigo) ou a Portugal.
As aulas foram muito produtivas auditivamente. Com a leitura labial e o uso do Sistema FM, pude compreender quase tudo do que era dito em sala. Os professores utilizaram alguns áudios e vídeos nas aulas, porém, a maioria era de músicas com a letra ou de atividades com roteiros, de modo que eu conseguia acompanhar tranquilamente. Eles sempre davam um jeito de me passar o conteúdo audiovisual por escrito para eu não ficar perdida nas atividades auditivas. Por fim, no dia 21 de julho recebi meu certificado de nível Avançado de Espanhol, e na tarde do dia 22 o grupo embarcou de volta ao Brasil, chegando na manhãzinha do dia 23 de julho. O suporte que a UNESP me proporcionou, com a disponibilização do recurso da monitoria, foi fundamental para a realização e o sucesso dessa viagem. Sem a presença da monitora, não seria possível a minha autonomia física no intercâmbio.
As ações da Unesp, da ADAP e dos meus pais na área do apoio e da acessibilidade me mostraram que ter uma ou mais deficiências não é uma barreira para o desenvolvimento de uma vida acadêmica, profissional e pessoal como a de qualquer outra pessoa sem deficiência. Nossa sociedade precisa se conscientizar da importância das iniciativas de acessibilidade para o desenvolvimento de todos os seus cidadãos.
Por Ana Raquel Périco Mangili.
Parabéns pela sua garra, sua história parece muito com a minha, eu estou no último ano do ensino médio e ler a sua história me motivou ainda mais!!
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Obrigada! Todo o sucesso do mundo a você! 😉
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