Quando eu era criança, tive que treinar muito para conseguir escrever e pintar à mão. Pelo fato de minha distonia ter atingido sobretudo o lado direito do corpo, me adaptei a usar a mão esquerda, apesar de ser destra e ter ambos os braços afetados pelo distúrbio de movimentos. Pegar no lápis e movimentá-lo na folha de papel sempre exigiu de mim muito mais forças, tempo e concentração do que das demais crianças.
Mesmo assim, às vezes apontavam meus desenhos e pinturas e diziam que eu deveria me esforçar mais, pois sempre havia riscos ou cores fora das bordas traçadas. Isso me aborrecia porque eu criava expectativas a cada nova atividade, mas sempre conseguiam achar algum defeito nelas. Acabei introjetando em mim os valores da chamada “normalidade física” e me cobrando demais por isso.
O tempo foi passando, e decidi ir em busca então de desenvolver o que a distonia nunca poderia atingir: meu intelecto. As artes manuais, os esportes, tudo ficou relegado ao esquecimento, cercado de traumas e dúvidas quanto à minha capacidade física de realizar tais tarefas. Com isso, deixei a dedicação aos estudos e às demais atividades intelectuais tomarem quase todo o meu tempo, o que me trouxe resultados maravilhosos a essa área de minha vida e uma grande satisfação interna. Mas jamais esqueci completamente o prazer que o ato de pintar me trazia na infância.
Com o sucesso recente dos livros de colorir, me senti tentada a praticar essa atividade. Mas as figuras geométricas, flores e desenhos abstratos detalhados não me traziam ânimo, pois sempre gostei de pintar ilustrações que tivessem significado para mim e com as quais eu me identificasse. Até que, no final do ano passado, encontrei na livraria que frequento um livro de colorir da Turma da Mônica Jovem. A turminha original marcou minha infância e também minha adolescência, com a versão juvenil dos personagens. Então, foi só eu arrumar um tempo em minha rotina corrida para testar novamente meus impulsos artísticos.
E me surpreendi com o resultado. O que sempre apontavam anteriormente nas minhas pinturas, agora não faz mais sentido. Não que eu tenha superado, de algum modo, os tremores e as contrações nos braços e colorido tudo milimetricamente em seus devidos lugares. A distonia ainda está comigo, e sempre estará. Porém, aprendi que posso fazer tudo o que eu quiser com ela.
A suposta “normalidade” é uma ilusão, uma criação humana para padronizar as pessoas e seus comportamentos, sejam eles físicos ou sociais. Não me importo mais com essas expectativas, internas e externas, ao fazer algo de que eu gosto. Passo o lápis no papel, minha mão dói, borro um pouquinho a pintura, descanso, e começo de novo, até terminar de colorir os personagens e poder admirar, enfim, a minha arte.
Por Ana Raquel Périco Mangili.